ARTIGO: Realmente, a cada dia, se invertem os valores nesse país de faz de conta, de João Gouveia

ARTIGO: Realmente, a cada dia, se invertem os valores nesse país de faz de conta, de João Gouveia

Como professor de 40 horas, com duas pós, da rede municipal de Salvador, tendo as vantagens incorporadas, por força do tempo no cargo de gestão, leia-se 10 anos, não ultrapasso de R$110 mil no ano meus rendimentos, é o que afirma o respectivo documento para o famigerado leão do imposto de renda.

Pois bem. Uma tal de MC ‘Pipoquinha’ (diz-se artista) não sei de onde, no auge de sua ignorância e ironia, debocha de uma categoria ao declarar “ganhar 70 mil para rebolar e balançar o ‘bumbum’ por 30 min e um professor ganhar R$5 mil.” Tremenda desfaçatez.

No primeiro momento, confesso, subiu-me até a cabeça uma raiva, mas foi dissipada, ao constatar que ela está certa. A MC Pipoquinha de algum modo visibiliza e escancara nossa crua realidade. Acabaram-se os tempos de respeito ao professor, a decência e outros valores.

Estamos em plena campanha salarial de 2023, apelando para a sensibilidade do gestor executivo da cidade o pagamento do piso instituído por lei de menos de R$5 mil. Ou seja que ele simplesmente cumpra determinação legal. A ‘artista’ do rebolado como toda ave de rapina realiza sua função: destrinchar e demonstrar a ‘alma’ e ‘civilidade’ dessa nossa sociedade adoecida e excluidora.

Ao término de cada fase dos processos educacionais, temos incutido na mente dos alunos (e dos filhos, também) que o objetivo de todo esse ‘sacrifício’ e esforço é para eles serem incluídos no mercado de trabalho, num país de 15 milhões de desempregados e “ganharem dinheiro”. É o que importa. Formação intelectual, científica, moral? Esqueçam. Nossa MC Pipoquinha ganha, muito mais que nós. Ponto. Fazer o quê? Não só lamentar a situação, mas mobilizarmo-nos à mudança dessa realidade. Alguns tomaram como ofensa e estão chateados. Perda de tempo. O que necessitamos é lutar contra as desigualdades sociais e de oportunidades. É levar conscientização a essa categoria para a dignidade do trabalho, convidando-a à defesa e à luta pela obediência e manutenção dos nossos direitos. É participar desse combate apoiando nas assembleias as ações do sindicato que temos.

É, também, fundamental uma ampla discussão dessa realidade salarial e de remuneração de representantes de alguns setores. Um jogador de futebol ganhar acima de R$1 milhão por mês, para efetivamente ‘trabalhar’ 90 minutos, cantores e bandas com cachês milionários por duas horas de show, modelos em camarotes de cervejarias ganhando R$3 milhões para aparecerem 3 horas, esses ‘influencers’ e ‘coachs’, palestrantes, pastores e ‘artistas’ faturando alto, de talento e ‘produtos’ duvidosos, produzindo ‘cultura’ da mediocridade e pífia estética, vendo a mídia promover certame para presentear o menos ‘pior’.

Então, a MC Pipoquinha pode continuar dando seus pulinhos, chacoalhando seus músculos glúteos, porque a ofensa maior é a permitida por essa sociedade hipócrita, cujos representantes legais falam em campanha sobre Ética e Moralidade e não dão o exemplo, indicam, consomem, aplaudem e valorizam aberrações como essa do ex-governador baiano e atual ministro do governo federal indicar e ver nomeada sua esposa, enfermeira, ao cargo vitalício de conselheira do Tribunal de Contas com salário de R$41 mil mensais,achando tudo ‘normal’, enquanto vão às mídias sociais acusar os professores de ‘vagabundos’, comunistas, sindicalistas, esquerdistas, doutrinadores e pagarem abaixo do piso, proporem 5% de reajuste de duas vezes, retirarem benefícios assegurados, rasgarem o plano de carreira, atrasarem avanços, em escolas insalubres, sem reformas, manutenção ou infraestrutura, sem climatização adequada, sem segurança, sem inspeções, com um legislativo imitando os três macaquinhos.

E, não darei espaço aqui, para outras ofensas, assédios e perversidades diárias perpetradas por gerência regional, diretores arbitrários e da madrasta da secretaria projetos ineficazes.

É ou não é ofensa? Mais: humilhação.

A MC Pipoquinha com sua ironia, ironiza a fria e indiferente sociedade brasileira, enquanto se mexe e remexe.

João Fernando Gouveia, o autor é biólogo professor e poeta baiano

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