Tema da redação do Enem: Lei que obriga ensino afro-brasileiro nas escolas não é aplicada em 71% das cidades
O tema da redação do Enem 2024 foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. De acordo com especialistas, há muitos debates possíveis de serem feitos sobre o assunto. Um deles inclui a Lei 10.639, que apesar de ter tornado obrigatório o ensino da história afro-brasileira nas escolas há 21 anos, ainda hoje não é aplicada com rigor. Um estudo realizado pelo Instituto Alana e Geledés Instituto da Mulher Negra apontou que 71% das secretarias municipais de educação realizam pouca ou nenhuma ação para a efetividade da norma.
O estudo, divulgado no ano passado, ouviu gestores de 1.187 secretarias municipais de educação, o que corresponde a 21% das redes de ensino dos municípios, sobre o cumprimento da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino para o combate ao racismo nas escolas há 21 anos.
Os municípios são os principais responsáveis pela educação básica. Do total, constatou-se que 29% das secretarias têm ações consistentes e perenes de atendimento à legislação; 53% fazem atividades esporádicas, projetos isolados ou em datas comemorativas, como no Dia da Consciência Negra (20 de novembro); e 18% não realizam nenhum tipo de ação. As secretarias que não adotam nenhuma ou poucas ações, juntas, somam 71%.
Sancionada em janeiro de 2003, a Lei 10.639/03 alterou a legislação máxima da educação brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e inseriu o ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo da educação pública e privada do país, em um marco importante na luta do movimento negro por direitos, e uma conquista de todos os brasileiros.
De acordo com Ana Paula Brandão, gestora do Projeto SETA (Sistema de Educação para uma Transformação Antirracista), o tema da redação do Enem 2024 é importante para debater a história sociocultural da população negra no Brasil. No entanto, a não aplicação efetiva da Lei pode fazer com que muitos alunos não tenham tido discussões sobre a temática em sala de aula, prejudicando, assim, seu desempenho dissertativo-argumentativo na prova.
— Há vetores que impactam na implementação da Lei 10.639. Um deles é que o currículo escolar ao longo do tempo pouco se preocupou com o tema da diversidade racial. Assim como a produção de material didático escolar e paradidático, que nem sempre tinha preocupação em apresentar um conteúdo que dialogasse com as crianças negras — afirma Brandão.
Tema desafia a pensar práticas antirracistas
De acordo com Bárbara Santos, professora de linguagens e redação no pré-vestibular Social Samba Educa, o tema da redação do Enem instiga a reflexão de como a sociedade brasileira deve rever a real importância de África para a construção social e cultural do país.
— O tema busca tirar estigmas e reconhecer a necessidade de conhecimento de uma cultura tão rica, tão singular. Tenho certeza que a grande maioria, se não todos, os professores que trabalham com redação enfatizaram esse tema tão relevante e atual para a sociedade brasileira que ainda precisa de um impulso pra reconhecer que não existe cultura brasileira sem falar de cultura africana — afirma a professora.
O professor Daniel Bravo, coordenador de redação do colégio Ao Cubo, explica que os candidatos poderiam construir seus argumentos explicando que a estrutura educacional brasileira, ao não fornecer escolas públicas com condições básicas de ensino, dificilmente conseguiria oferecer uma educação especializada sobre a herança africana no Brasil.
— Isso dificultaria a formação de uma mentalidade voltada para a valorização desse conteúdo — aponta o professor.
Também seria possível observar que, diante da desvalorização da herança cultural africana, essa distorção pode fortalecer práticas preconceituosas e dificultar, por exemplo, a expansão do espaço destinado às religiões afro-brasileiras.
— Como possíveis soluções, poderia ser criado um grupo de trabalho interministerial que, com base no estudo de dados estatísticos, propusesse um plano para ampliar a presença dessa temática em ambientes midiáticos e educacionais — conclui Bravo.
O Globo