Che Guevara nas trilhas da revolução latino-americana

por Augusto Buonicore*

“Outra vez sob meus calcanhares o lombo de Rocinante, retomo o caminho com meu escudo no braço (…) Muitos dirão que sou aventureiro, eu sou de fato, só que de um tipo diferente, daqueles que entregam a pele para demonstrar suas verdades”. Che Guevara – Trecho da carta endereçada aos seus pais, antes de partir para sua última trincheira na Bolívia.
Há 40 anos, no dia 9 de outubro, morria o comandante Che Guevara. Tombou no seu posto de combate pela libertação econômica, política e social da América Latina. Mas quem foi Che Guevara? Qual sua contribuição à causa socialista? Tentaremos, sem grandes pretensões, encontrar algumas dessas respostas neste e no próximo artigo.
Nas décadas que se seguiram à sua trágica morte nas selvas bolivianas, Che foi perdendo sua substância e se transformando num ícone; na verdade, um dos maiores ícones da segunda metade do século 20. Seu rosto de guerrilheiro altivo foi estampado em camisetas, cartazes e pichações por todo o mundo. Se existe um lado positivo neste fenômeno, pois mantém viva a imagem de um dos maiores heróis latino-americanos; de outro, ele acaba acobertando as idéias e o projeto político pelo qual Guevara viveu e morreu: a libertação da América Latina do julgo imperialista, a conquista do socialismo e a construção do homem e da mulher novos.

 

O sistema capitalista tem uma incrível capacidade de incorporar alguns elementos da cultura alternativa, até mesmo revolucionária, e transformá-los em objetos de mercado, formas sem conteúdo, neutras, inofensivas. No entanto, a personalidade forte de Che não pode ser presa, capturada, na camisa de força do ícone, da marca, do mito.
Por isso, para compreender o verdadeiro Che, é preciso ir para além do ícone, além da marca, além do mito. Estes não têm sangue correndo nas veias, não são de carne e osso, não sentem fome ou frio. Eles não têm dúvidas ou medos, são fantasmas que não convivem com as malditas contradições cotidianas. Ao contrário dos ícones, os homens e mulheres de verdade, inclusive os mais revolucionários deles, padecem de todas essas vicissitudes humanas e Che foi, acima de tudo, um homem. Um homem do seu tempo.

 

O homem e seu destino

 

Ernesto Guevara de la Serna nasceu em 14 de junho de 1928 na Argentina. Filho de família de pequenos produtores rurais de erva-mate. Cresceu usufruindo a vida de um membro das classes médias sul-americanas. Mas, desde muito cedo, Ernesto sofreu com os seus problemas de saúde. Aos dois anos apareceu-lhe a asma, que o acompanhou, como um fantasma, durante toda sua vida, inclusive nos seus derradeiros dias nas selvas bolivianas.

 

Ironicamente, aquele que seria considerado o mais temido comandante guerrilheiro latino-americano, foi declarado inapto para o serviço militar no seu próprio país. Guevara, então, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires.
A doença, no entanto, não enfraqueceu o seu espírito indomável; pelo contrário, ela o impulsionou a ultrapassar todos os limites. Com 23 anos comprou uma motocicleta e, ao lado de um amigo, percorreu diversos países da América Latina. Em 1953 se formou em medicina e partiu novamente em outra aventura para conhecer mais e melhor seu sofrido continente. Passou pela Bolívia e depois seguiu para a Guatemala, onde havia um governo democrático e popular, dirigido por Jacobo Arbenz. Este havia expropriado as terras da poderosa empresa norte-americana United Fruit. Nesta ocasião Guevara comprou alguns livros marxistas e passou a estudá-los com afinco.
O jovem Guevara, que apoiava o governo, se alistou para trabalhar num programa de saúde entre a população indígena, mas foi obrigado a ficar num posto médico na capital guatemalteca. Em 18 de junho de 1954 o presidente Arbens foi derrubado do poder por mercenários apoiados pelos EUA. Guevara tentou organizar um grupo de jovens para resistir à invasão. Afirmaria mais tarde: “Na Guatemala era necessário lutar, porém quase ninguém lutou”.

 

O jovem médico argentino, fichado como “perigoso comunista”, foi incluído nas temidas “listas negras” dos condenados à morte e obrigado a se refugiar no consulado argentino. O novo governo conservador, servilmente, devolveu as terras nacionalizadas à United Fruit, retirou os direitos trabalhistas dos camponeses pobres, prendeu, torturou e assassinou vários militantes de esquerda.

 

Guevara extraiu deste trágico acontecimento as suas primeiras – e inesquecíveis – lições sobre a luta emancipacionista na América Latina. Ele concluiu que: 1º o imperialismo norte-americano era o principal inimigo dos povos; 2º a luta revolucionária seria o único meio para se conquistar um poder democrático, popular e socialista; 3º as burguesias nacionais já haviam esgotado o seu papel na luta revolucionária antiimperialista no continente.
Guevara passou dois meses asilado no consulado argentino e, então, seguiu com outros refugiados para o México. Ali entrou em contato com elementos da oposição cubana, ligados ao movimento “26 de julho”, que o convidaram para participar dos planos para derrubada do ditador Fulgêncio Batista. Escreveu ele: “Falei com Fidel uma noite toda. E ao amanhecer já era o médico de sua futura expedição. Na realidade, depois de minhas caminhadas por toda América Latina e do arremate na Guatemala, não era necessário muito para incitar-me a entrar em qualquer revolução contra um tirano”. Amarrava-se assim o destino do jovem médico argentino com o da revolução cubana.

 

Depois de um ano de preparativos, em novembro de 1956, 82 homens partiram para Cuba a bordo do Granma. Antes de chegar ao seu objetivo a expedição foi descoberta pelas forças armadas do ditador cubano e, após os duros combates, ficou reduzida a apenas 15 homens, que se refugiaram nas Sierra Maestra. Os poucos sobreviventes uniram-se aos camponeses pobres, que lhes serviram de base de apoio para o início da ação guerrilheira. Em pouco tempo Che assumiu o comando da 2ª coluna de guerrilheiros. No dia 1º de janeiro de 1959 as suas tropas conquistaram a cidade de Santa Clara e o ditador Batista fugiu de Cuba. Três dias depois os “barbudos” de Fidel entraram triunfantes em Havana e Guevara foi nomeado governador militar daquela província.
A revolução vitoriosa foi profundamente popular, assentada nos camponeses e nos trabalhadores urbanos, e cumpriu todos os seus compromissos. O governo revolucionário expropriou os latifúndios, muito deles pertencentes a companhias norte-americanas. Quando as refinarias norte-americanas localizadas em Cuba se recusaram a refinar petróleo vindo da URSS, o governo cubano as nacionalizou. Em represália, Washington suspendeu a compra de açúcar, visando sufocar a economia da ilha. A cada pressão dos norte-americanos, o governo cubano radicalizava ainda mais as suas posições antiimperialistas. A revolução foi rapidamente mudando seu caráter, de nacional-democrática passou a ser socialista.

 

Em abril de 1961 ocorreu a tentativa de invasão de Cuba por mercenários, pagos e apoiados pela CIA, na Bahia dos Porcos. As tropas invasoras foram destroçadas em poucas horas. Fidel rompeu definitivamente com os norte-americanos e se afirmou marxista-leninista.
Ainda neste ano Che representou Cuba na reunião da Organização dos Estados Americanos, ocorrida no Uruguai, que foi convocada especialmente para condenar o novo regime cubano e excluí-lo da organização. Neste conclave Guevara denunciou firmemente os planos do imperialismo contra à ilha e defendeu o governo de Fidel da acusação de estar tentando exportar a revolução para a América Latina. Declarou ele: “Não podemos deixar de exportar exemplos, como querem os Estados Unidos, porque o exemplo é algo espiritual que ultrapassa as fronteiras. O que damos de garantia é que não exportaremos a revolução, damos a garantia de que não se moverá um fuzil de Cuba, que não se moverá uma só arma de Cuba, para luta em nenhum outro país da América”.

 

Continuou: “O que não podemos assegurar é que as idéias de Cuba deixem de implantar-se em algum outro país da América. O que asseguramos a esta Conferência é que, se não se tomarem medidas urgentes de prevenção social, o exemplo cubano penetrará nos povos e, então, aquela exclamação (…) de Fidel em 26 de julho e que foi interpretada como uma agressão, se tornará uma realidade. Fidel disse que se mantiveram as atuais condições sociais ‘a cordilheira dos Andes será a Sierra Maestra da América’”.

 

Na volta Guevara passou pelo Brasil e foi condecorado pelo presidente Jânio Quadros. Poucos dias depois, sob forte pressão da direita, o presidente brasileiro renunciaria, abrindo uma crise política e militar que conduziu o país a beira de uma guerra civil.

 

Em outubro de 1962 aconteceu uma nova crise com os EUA. O governo norte-americano descobriu que Cuba possuía mísseis nucleares e passou a exigir que fossem imediatamente desmontados. Houve, então, uma nova ameaça de invasão e o mundo chegou bastante próximo de uma guerra nuclear. Os soviéticos recuaram e, unilateralmente, sem acordo com os cubanos, decidiram retirar os mísseis da ilha. Fidel e Guevara sentiram-se traídos pelos russos.
Em 1961 Guevara foi indicado para Ministro da Indústria. Defendeu uma industrialização mais rápida e a centralização maior da economia. Por suas posições entrou em conflito com os soviéticos que defendiam uma Cuba não-industrial que se concentrasse na produção de açúcar – numa espécie de divisão internacional do trabalho “socialista”. Polemizou também em torno da predominância de incentivos materiais para o aumento da produtividade do trabalho e advogou a necessidade de uma emulação assentada fundamentalmente na ideologia socialista. Como ministro Guevara visitava as fábricas e canaviais e participava dos trabalhos manuais. Ele foi o principal incentivador do trabalho voluntário na produção, seguindo exemplo dos primeiros anos da revolução soviética. Os membros dos ministérios e das universidades, uma vez por semana, ajudavam no corte de cana ou exerciam outro tipo de trabalho, manual e produtivo. À frente deste esforço estava o ministro e presidente do Banco de Cuba, Ernesto Che Guevara.
Guevara valorizava muito o aspecto ideológico também na construção do chamado “homem novo”, ou seja, de um novo humanismo socialista.  Em “O que deve ser um jovem comunista”, escreveu ele: “o que se coloca para todo jovem comunista é ser essencialmente humano, ser tão humano que se aproxime do melhor dos humanos. Purificar o melhor do homem através do trabalho, do estudo, da prática da solidariedade contínua com o povo e com todos os povos do mundo; desenvolver o máximo de sensibilidade, até o ponto de sentir-se angustiado quando em algum canto do mundo um homem é assassinado e até o ponto de sentir-se entusiasmado quando em algum canto do mundo se levanta uma nova bandeira de liberdade”.

 

Outras serras, outras trincheiras

 

No entanto, Che não se adaptou bem na função de Ministro de Estado e acabou pedindo para ser substituído no cargo A partir de 1964 tornou-se uma espécie de relações exteriores da revolução cubana, viajando para vários países da América Latina, África e Ásia. Em 1965, misteriosamente, desapareceu da vida pública e renunciou à todas suas responsabilidade junto ao governo e a direção do Partido Comunista Cubano.  Isto era necessário tendo em vista o novo projeto revolucionário que ele iria se envolver.
Na sua carta de despedida à Fidel escreveu: “Outras serras do mundo requerem meus modestos esforços. Eu posso fazer aquilo que lhe é vedado devido à sua responsabilidade à frente de Cuba, e chegou a hora de nos separarmos (…) Declaro uma vez mais que eximo Cuba de qualquer responsabilidade, a não ser aquela que provém do seu exemplo. Se minha hora final me encontrar debaixo de outros céus, meu último pensamento será para o povo e especialmente para ti, que te digo obrigado pelos teus ensinamentos e pelo teu exemplo, ao que tentarei ser fiel até às últimas conseqüências dos meus atos; que estive sempre identificado com a política externa da nossa revolução, e continuo a estar; que onde quer que me detenha sentirei a responsabilidade de ser revolucionário cubano, e como tal atuarei. Não lamento por nada deixar nada material para minha mulher e meus filhos. Estou feliz que seja assim. Nada peço para eles, pois o Estado os proverá com o suficiente para viver e para ter instrução”. Esta carta é um veemente desmentido aos boatos que correram o mundo – e foram usadas pelos inimigos da revolução cubana – sobre um possível rompimento de relações entre os dois revolucionários cubanos.
Depois de participar de uma frustada tentativa revolucionária no Congo, ele partiu secretamente para a Bolívia. Este país foi escolhido por sua localização central, que, acreditava, permitiria estender o movimento guerrilheiro por todo continente latino-americano. Em março de 1967 o pequeno grupo guerrilheiro comandado por Che foi descoberta pelos órgãos de repressão. Num primeiro momento ele obteve algumas vitórias sobre o desorganizado exército boliviano, mas logo entraram em ação os “rangers”, treinados pelos norte-americanos no Panamá, com o apoio de “técnico” da CIA.
A experiência da guerrilha boliviana revelou os equívocos de muitas das concepções político-militares defendidas pelo revolucionário cubano, entre elas: a afirmação de que já existiriam as condições objetivas para eclosão de uma revolução socialista em toda América Latina, cabendo apenas a ação enérgica de um pequeno grupo de revolucionários para que se constituíssem as condições subjetivas.

 

No início de outubro eram apenas 17 os guerrilheiros que permaneciam vivos ao lado de Che – um número maior do que o que se alojou na Sierra Maestra em 1956 -, mas as condições eram-lhes completamente adversas. A guerrilha atuou numa zona hostil, em condições bastante diferentes das existentes na serras cubanas. Os camponeses compunham uma massa ainda atrasada e que não tinha a tradição revolucionária dos camponeses cubanos. A principal força social de esquerda na Bolívia, os mineiros, havia sido esmagada pelo governo em junho de 1967.  Esta era uma prova de que as revoluções não podem ser copiadas.

 

Nos seus últimos dias, Guevara escreveu: “Dia de angustia que em certo momento pareceu ser o nosso último dia (…) o exército está mostrando maior efetividade de ação, e a massa camponesa não nos ajuda em nada e se converte em delatores”. Estes eram claros sinais que uma tragédia estava prestes a ocorrer. A situação exigia recuo, mas já era tarde demais.

 

No dia 8 de outubro de 1967 o pequeno grupo foi cercado e massacrado. Che acabou sendo ferido em combate e preso. No dia seguinte foi executado ilegalmente por ordens do governo do general Barrientos, que temia que um julgamento público pudesse se transformar num palanque para as idéias revolucionárias de Che. O corpo do comandante guerrilheiro foi enterrado clandestinamente e por mais de 30 anos o local permaneceu desconhecido.

 

Sobre o trágico desaparecimento de Che e as esperanças que ele semeou, cantou o poeta e compositor cubano Pablo Milanés: “Não porque caístes/ Tua luz é menos alta./ Um cavalo de fogo/ Sustenta a tua escultura guerrilheira/ Entre o vento e as nuvens destas serras./  Não porque foi calado és silêncio/ E não porque te queimaram,/ Porque te dissimularam sobre a terra,/ Porque te esconderam/ Em cemitérios, bosques e pântanos/ Vão impedir que te encontremos./ Che comandante, amigo”.

 

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